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Se um não quer, dois não continuam casados
por Redação Revista Sou
Publicado em 29 de março de 2022 às 09:34 / Atualizado em 29 de março de 2022 às 09:34
*Por Kymbille Lopes:
Você certamente ouviu, mesmo que em obras de ficção, que fulano não “daria o divórcio” a ciclano, mas essa não é uma verdade, ao menos não atualmente.
Sabe-se que o casamento historicamente ocupou o lugar de base da sociedade tradicional heteronormativa, sendo regido, em tempos não tão distantes, pela figura do homem como guardião da família, a quem cumpria, seja pelo pátrio poder ou pelo poder marital, a tomada das decisões sobre a vida de sua esposa e filhos.
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Tal contexto social histórico possuía reflexos também no âmbito jurídico onde, ainda no século XX, não se admitia sequer a dissolução do casamento no Brasil por outro motivo que não pela morte de um dos cônjuges, sendo grande inovação tida na década de 1970 a possibilidade do chamado desquite, mas que ainda pressupunha a manutenção jurídica do casamento e vedação à nova união por qualquer dos ex-cônjuges, além da necessidade de contenda sobre culpa atribuível à um ou outro, por exemplo.
Mais à frente, no início do século XXI, com o Código Civil, o casamento ainda transportando a sua importância social para o meio legal, trouxe a possibilidade do divórcio associado à figura da separação por consenso dos cônjuges ou por suprimento judicial, desde que motivado pela culpa ou pela ruptura dos deveres conjugais, retratando, mesmo que timidamente, a carga de uma construção social de submissão ainda enraizada.
Embora se tratasse em todo este contexto de uma garantia legal pautada na decisão conjunta dos consortes, o divórcio se associava – e em muitos casos ainda se associa, em razão dos resquícios do poder marital – à decisão final do homem, o que por si só, ainda que juridicamente contrário, demandava o tolhimento da vontade da mulher, enquanto consequência do modelo matrimonial patriarcal e onde se legitimava o exercício dos poderes masculinos sobre o dito “sexo frágil”, que se submergia às vontades daqueles com sua voz calada e pensamentos suprimidos.
Em suma, há menos de 20 (vinte) anos, acaso a opção pelo fim jurídico do matrimônio não fosse mútua – leia-se, quase por iniciativa ou concordância da figura masculina da relação – ou inexistindo culpa, resistindo um dos consortes à vontade do outro, em geral, aquele se tornava refém de um casamento falido.
Pouco tempo após, verificada a não contemporaneidade das regras relativas à dissolução do casamento a partir do desenvolvimento social, o divórcio deixou de ser um direito subjetivo comum, para se transformar em um direito potestativo daquele que não possuía mais vontade de seguir a vida a dois, independentemente da vontade do outro ou do Estado, assim como dos requisitos de restrição temporal ou causal antes necessários. Ou seja, tanto o início do matrimônio, quanto o seu término, passaram a ser vistos como atos de exclusiva autonomia dos consortes, sendo a dissolução, juridicamente motivada ou não, consensual ou não, elevada à direito fundamental.
Significa dizer que no âmbito legal se exige que os efeitos jurídicos de um casamento estejam subordinados apenas à reciprocidade afetiva, que uma vez cessada, suprimiria qualquer justificativa ideológica para a manutenção do matrimônio, exatamente por pressupor uma parceria colaborativa das partes, com direitos e deveres equivalente, sendo desnecessária a exposição de motivos ou fundamentação da decisão, bastando a simples declaração unilateral desta vontade.
Logo, ainda que até mesmo no dia-a-dia profissional não raras vezes vejamos o medo da recusa de concessão do divórcio quase como um impeditivo ao rompimento desse ciclo, compreensível a partir do contexto histórico social relatado, quase sempre em razão da visão relativa ao poder marital, SE UM NÃO QUER, DOIS NÃO CONTINUAM CASADOS, bastando que se comprove judicialmente, por meio da própria certidão de casamento, a existência do matrimônio jurídico e se declare expressamente a vontade de sua dissolução, para que o divórcio seja imediatamente decretado e retratado junto ao registro civil, ainda que se prossiga com discussão sobre partilha de bens, guarda dos filhos etc.
*Kymbille Larissa Lopes Siqueira é Advogada associada da sociedade de advogados Ferreira & Goulart Advocacia e Consultoria Jurídica, Pós-graduada em Direito Civil e Processual Civil.
E-mail: [email protected].
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